quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Filinto Elísio

Vemos nos Estudantes em geral, em especial (hoje em dia) nos do ensino superior, uma curiosa Tradição: a do brinde. Sempre que a ocasião o propicia (ou seja, quando a vontade assim o ditar), fazem-no, entoando uns cânticos.
Ora, nisto não são os Nicolinos excepção; também eles alimentam este hábito. Embora o façam – claro! – de uma forma diferente dos estudantes de Coimbra (que “pegaram” o seu costume a outros). Quando decidem fazer um brinde, fazem-no evocando um dos maiores poetas portugueses do século XVIII, que ficou para a História conhecido por Filinto Elísio.

Reza assim o brinde:

Filinto Elísio da velha França
Enchei-me a pança deste licor
Que pena eu tenho que as minhas tripas
Já não suportem mais cem mil pipas

Ora, quem foi afinal Filinto Elísio, para ser evocado e lembrado pelos Estudantes vimaranenses?

Diz-nos Natália Correia, na sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (Antígona e Frenesi, Lisboa, 1999) o seguinte:

«Francisco Manuel do Nascimento, nasceu em Lisboa em 1734. Tomou ordens sagradas e foi professor de latinidade de D. Leonor de Almeida, depois marquesa de Alorna, ao tempo recolhida no Convento de Chelas por ordem do marquês de Pombal, dela recebendo o pseudónimo arcádico por que ficou a ser conhecido, e que trocou pelo nome de Niceno, adoptado quando da sua ligação com o Grupo da Ribeira das Naus, adversário da Arcádia Lusitana.
Imbuído do iluminismo francês, a queda de Pombal forçou-o a procurar exílio em França para fugir à Inquisição, em resultado de uma denúncia apresentada pelo padre José Manuel de Leiva, em 1758, mas em cuja origem estaria o marquês de Alorna, a quem repugnava a intimidade do poeta com as filhas D. Maria (Daphne) e D. Leonor (Alcipe).
Em Paris, onde morreu em 1819 e editou as suas Obras Completas, defrontou-se com a miséria e a doença, inspirando o seu infortúnio a Lamartine um poema em que o chama “divino Manuel”.
Defensor da poética horaciana, o postulado de um rigor formalista que faz dele o expoente do estilo arcádico, suscitou a escola filintista em oposição à fluidez palpitante de elmanismo que rompia a via láctea do Romantismo. Não obstante esta divergência estética, Bocage rende-se à preponderância que o Árcade exerceu nos poetas da época, orgulhando-se, num soneto, de “Filinto, o grão cantor” ter prezado os seus versos.
Dominado pela paixão da pureza linguística, satirizou os introdutores de estrangeirismos numa composição intitulada “O Debique”. Também se não furtou aos apelos da poesia libertina, observando assim a tradição clássica que lhe vigiava o engenho. (…)»

Camilo Castelo Branco escreveu-lhe também uma biografia, que aqui também reproduzimos (conforme constante no vol. XIII das Obras Completas de Camilo Castelo Branco, Lello & Irmão Editores, Porto 1991, pp. 645-647).

«O padre Francisco Manuel do Nascimento, a quem a marquesa de Alorna, dulcificando-lhe a crisma poética, chamava o seu Filinto, exclamava em Paris:

Feliz quem rumas de calções possui!
(Calções, digo, nem rotos, nem surados).
O santo Job, chagado na esterqueira,
Calções não precisava
Mas eu… Não digo mais. –Passem dois dias,
Não saio. – E, se eu sair, na rua, a gente
Me corre às apupadas, e os garotos
Me enxovalham com lama.
Dois calções, cujas eras me não lembram,
Sobrepondo fundilhos a fundilhos,
Não sofrem ponto sem rasgar-se o pano,
Que lhes clamou concerto.
Feliz quem tem calções!...

Ele tinha-os rotos, surrados e incorrigíveis, o grande poeta. Diz que tiritava. Deus, contra o seu costume, dera-lhe mais frio que roupa. A Inquisição de Lisboa quisera aquecê-lo deveras; e ele fugira para o Havre, com um gigo de laranjas às costas como qualquer mariola, podendo figurar no Rossio com a majestade fúnebre de Savonarola e João de Leyde.
Muita gente mais inimiga da Inquisição do que instruída na sua história, e mais adversa ao clero que lida nos processos do tribunal da fé, persuade-se que o Santo Ofício não queimava padres, nem frades, nem freiras, nem cónegos, nem fidalgos. Cuidam que as suas achas alcatroadas só se acendia para carbonizar judeus e judias. Fazem esta injustiça à mais recta e imparcial das instituições humanas.
Eu, no meu escasso arquivo de processos da Inquisição, possuo mais de seis dúzias de sentenças que condenam padres a degredo, a açoutes, a galés e ao fogo.
Uns eram priores, outros missionários da Companhia de Jesus, alguns de mosteiros reformadíssimos, e muitos simples clérigos da Ordem de S. Pedro – patrono que é de crer lhes abrisse as portas do Céu para se vingar da Ordem de S. Domingos.
O padre Francisco Manuel era desta Ordem; mas, em vez de recorrer a S. Pedro, valeu-se do negociante Verdier que lhe deu escape, quando os ebirros o farejavam, e lhe negociou passagem a bordo de um navio holandês.
Este padre esquivou-se à fama que lhe cingiria a fronte com imorredoira auréola, se se deixasse queimar como o frade capucho Diogo da Assunção, de Ponte de Lima (1603), que os hebreus adoram no martirológio dos seus santos; não invejaria a constância luterana do padre jesuíta Mateus Francisco, queimado em Goa, em 1664; morreria, saudando a ideia nova como o padre José de Sequeira, queimado em 1745, em Lisboa; enfim, na galeria dos padres dados ao Diabo e à carne, o seu nome estaria entre o do confessor da Igreja dos Mártires, Francisco Henriques, e o do padre Bartolomeu de Góis, cura de S. Paulo, queimado no Rossio em 1621.
Não, senhores: o padre Francisco Manuel do Nascimento antes quis andar-se de Paris para Amsterdão e de Amsterdão para Paris, a tremer de frio, a mendigar ovos-moles a toda a gente, e a gemer em versos espinhosos como dorso de javali arranhado:

Feliz quem tem calções!

E assim arrastou, escura, rota e faminta, uma vida de oitenta e cinco anos, premiada entre dois terrores e dois ódios implacáveis: ao galicismo e à Inquisição.
Era tanto o seu amor à língua pátria que refloriu todas as obscenidades lusitanas da Rua da Madragoa nos seus Contos. Coçava a epiderme calosa dos setenta anos com a escumalha refugada das forjas dos dicionaristas. Os dominicanos bem sabiam porque desejavam queimá-lo. Eles pressagiavam que, transcorrido um século, viria, em seguida aos gafanhotos do Alentejo, uma revoada de rouxinóis, que aprenderam a trilar os seus cantares libertinos nas frases do clássico Filinto, de quem rejeitaram as graças portuguesas, sendo certo que não há pensamento de torpeza moderna que desquadre no feitio que lhe dava o clássico.
Lamartine cantou-o na Meditação XV, e, no comentário à meditação, dá-nos a novidade de que o padre tinha consigo uma bonita freira em Paris, quando orçava pelos oitenta anos.
Une jeune reiligeuse, d’une beauté touchante, et d’un dévouement absolu, s’était attachée d’enthousiasme à l’exil et à la misère du poète.
Isto é uma calúnia. Pobre velho, a deitar freira, não podendo deitar calções!
Lamartine, como se estivesse em hora de patarata, com aqueles ares de poseur muito seus, acrescenta que Filinto Elísio lhe ensinara a língua portuguesa.
Ora é de notar que Francisco Manuel, trasladando nas suas obras a ode de Lamartine, trata com desdém o poeta para ele desconhecido, e mostra-se nada lisonjeado com os encarecidos gabos dum sujeito que ainda não tinha nome.
Certo, não procederia assim se Lamartine fosse seu discípulo.»

É então este o homem que os Nicolinos cantam: um padre pouco celibatário, por certo também pouco dado à sobriedade que a vida sacerdotal lhe exigiria (em teoria), um fugido, um herege. Certamente tudo isto se enquadra o espírito das também pouco religiosas Festas Nicolinas, e na saudável boémia dos Estudantes, que buscam no néctar brindado o estro do Filinto!



Frei Clemente de Santa Maria das Dores

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