S. Nicolau. Gravura da colecção da Sociedade Martins Sarmento. Aqui se transcreve um testemunho publicado no jornal O Comércio de Guimarães, sobre as festas do estudantes a S. Nicolau na segunda metade do século XIX:
De tempos imemoráveis os estudantes desta cidade faziam uma função, que principiava por levantar-se um enorme pinheiro, no meio do campo do Toural, tendo uma bandeira no cimo com o quadro da Minerva.
Esse pinheiro dava de ordinário entrada pelas 7 ou 8 horas da noite, conduzidos dos arrabaldes da cidade, por seis ou sete juntas de bois, com muitos archotes e uma música, tocando o hino escolástico, indo na frente muitos estudantes, tocando tambores e zabumbas.
Até ao dia 6 de Dezembro (dia de S. Nicolau) desde o dia 30 de Novembro, ao romper da aurora, ia a caminho de Nossa Senhora da Conceição, às novenas, uma grande parte desses estudantes, também com tambores e Zabumbas.
No dia 5 de Dezembro, pela uma da madrugada, saía uma música, indo na frente os estudantes, que iam às posses, isto é, a certas casas, em que os recebiam dando-lhes umas uvas (rua de S. Dâmaso), outras figos e aguardente (casa do professor Venâncio e António Pereira da Silva) e outros doce e vinho tinto.
Muitas dessas pessoas que obsequiavam os estudantes já faleceram.
Na Cruz de Pedra, os oleiros davam o mato para o magusto que se fazia no largo do Toural, distribuindo-se as castanhas e o vinho da Comissão pelos músicos e homens que traziam o mato, sendo defeso aos estudantes partilhar deste magusto, pois, como diziam os Padres Abreu e Vinhós, quando algum lhe aparecia, o magusto desta noite não era dos estudantes propriamente dito. O destes era em Santo Estêvão de Urgezes, na manhã do dia 6.
Assim se passava a noite do dia 4 e madrugada do dia 5 em continua algazarra e alegria, havendo sempre mais ou menos a sua desordem, que terminava sempre em coisa alguma.
Pelas duas horas da tarde do dia 5 de Dezembro saía o bando escolástico, com mascarados tocando tambores e zabumbas, organizado com diferentes carros alegóricos, com um estudante vestido de Guimarães, outro de Minerva, etc, etc.
Então, um estudante, a quem era expressamente vedado assistir ao magusto da noitada, recitava o bando em verso, feito sempre por um dos melhores poetas desta cidade, distribuindo-o um outro estudante pelo povo, devidamente impresso, em que anunciava as danças, cavalhadas e exibições do dia 6, declarando que aquela festa era só exclusiva dos estudantes, e ai do que se metesse no festejo, não pertencendo à classe!...
Um ano, um indivíduo de alcunha o "Maneta", ousou entrar mascarado nela. Os estudantes, quando o reconheceram, bateram-lhe tanto, que lhe quebraram um braço, julgando que o deixaram morto.
Outros pagaram com um banho no chafariz do Toural o atrevimento de tomarem parte nestes festejos...
Posto o bando na rua, a primeira casa onde se recitava, era a do administrador, como sinal de respeito e permissão para ele prosseguir, e assim corria as ruas da cidade até às 10 horas da noite.
No dia 6, pelo meio-dia, vinham os estudantes da freguesia de Santo Estêvão, para onde tinham ido, uns a cavalo, outros de carro, para tomarem conta da renda.
Todos ali, numa eira completamente varrida pelo estudante mais novo, recebiam da Comissão castanhas, vinho e maçãs, pois era este o verdadeiro magusto dos estudantes.
No dia 6, era depois do magusto, em Santo Estêvão, a distribuição das maçãs e castanhas às damas de Guimarães, vindo os estudantes a cavalo, trazendo lanças enfeitadas com laços de seda, estes os mais pequenos, e a Comissão e outros estudantes mais taludos, em carros. Esta distribuição fazia-se pelo meio-dia, e terminava às duas horas da tarde.
Logo que chegavam ao Toural, a primeira coisa que faziam era dar meia volta em redor do pinheiro, como homenagem à deusa da Ciência.
Em seguida, dispersavam, indo todos ou quase todos ao Convento de Santa Clara, hoje seminário, levar as maçãs às freiras, que as recebiam, fazendo troca com doces que lhes enviavam das suas celas em cestinhas presas por fitas de cor.
Às duas horas da tarde saíam as danças: uma, a dos pequenos estudantes, outra, a dos grandes.
Muitos anos foi o Fatinho (uma santa criatura) o seu ensaiador.
Que paciência ele não tinha para isto!
Em antes uns oito dias ia ele e o Padre Vinhós ou o Padre Abreu à aula de latim, pedir ao Venâncio dispensa do estudo para as festas.
Mal entravam, isso sucedia quase sempre de tarde, todos os estudantes principiavam a fazer-lhes acenos, para que fossem enérgicos no pedido.
Venâncio, porém, imperturbável e frio, da sua cadeira, não prestava a menor atenção aos embaixadores.
Afinal, quando estes eram próximos da magistral cadeira, perguntava-lhes: que temos?
- Eles, a sorrir respondiam, pedem-se férias e já hoje se tem de fazer a escolha dos rapazes para as danças.
- Ainda é muito cedo, continue dizendo a lição, snr....
-Nada, nada. O feriado é hoje preciso, porque se têm de escolher roupas, etc.
- Isto há-de acabar um dia, dizia o Venâncio. Os rapazes precisam de estudar.
Vá por este ano.
Tudo debandava para as varandas dos claustros de S. Francisco, fazendo uma algazarra medonha.
Vinhós, Padre Abreu e Fatinhos talhavam, e o S. Carlos, que era o director das obras do hospital, ou o pai dos snrs. Abreus, faziam a polícia de sarrafo em punho.
Berravam, ameaçavam, mas riam-se ao mesmo tempo.
Que saudades não sentimos por essa época de verdadeira e única felicidade!
Ser estudante de latim nesse tempo, parece que constituía a prerrogativa mais nobre dos rapazes de Guimarães.
Hoje, que há verdadeiros estudantes, e verdadeiros académicos, pois que passam por provas de exames, que os habilitam a um dia ocuparem na sociedade cargos importantes, vê-se ainda muita indiferença, senão até frieza.
Pois estes festejos, tradicionais e próprios de Guimarães, têm toda a razão de ser.
Diferentemente, sim, é certo, mas Coimbra, Lisboa e Porto, também um dia no ano presenciam as expansões académicas.
(O Comércio de Guimarães, Dezembro de 1906)
[continua]