quinta-feira, 8 de novembro de 2007

As Nicolinas há um século (II)

"Do S. Nicolau de há mais de meio século já deixei aqui uns traços de como o vi, no tempo em que “velhos” e novos o solenizavam, com estrondo, alegria, e graça; e entusiasmo de estudantes e população.

Essas foram as impressões mais nítidas, mas ainda ficaram uns episódios dispersos que já não posso localizar e que os meus contemporâneos procurarão recordar e enquadrar no ambiente em que se realizaram.

Um deles, e quase todos Os que vou relatar, se passou na récita do 1.° de Dezembro no velho, acolhedor e aconchegado teatro de D. Afonso Henriques, no Campo da Feira.

Saía a Academia com bandeira. Comissão das festas de capa e batina, laço verde de grandes fitas no ombro esquerdo, a música do João Inácio, e andava por essas ruas aos “vivas” às Damas vimaranenses, a João Pinto Ribeiro (coitado, morto há séculos), aos heróis e, é claro, à Academia vimaranense, e outros que tais, acompanhada de numerosa garotada e os imprescindíveis archotes, que davam um tom espectacular e fumarento e entusiasta a essa marcha da rapaziada.

Recolhia o cortejo e já o teatro se encontrava à cunha, camarotes, plateia, geral e “galinheiro”, e a Comissão com a bandeira, e o grupo que envergava capa e batina, faziam a sua entrada solene no palco para o discurso de abertura, pronunciado pelo Presidente.

Ora é preciso dizer que para estas ocasiões solenes os rapazes não estavam preparados com o sangue frio necessário para enfrentar o público, e procuravam ganhar coragem com uns copitos de jeropiga ali na loja do “Preto” ou no Zé da Rede; de modo que chegavam ao palco já um pouco “entusiasmados”, e um deles o Presidente, encarregado do discurso de apresentação, não sei se o Ferreira de Lemos, de Santo Tirso, se o “Pai Casaca”, entre o profundo silêncio do público, destraçando a capa, compondo a batina e pigarreando de circunstancia, adianta-se uns passos e começa, com pausa e todo o aprumo:

“1.° de Dezembro era o ano 1640 era o dia…”

E mais não disse, tal foi o trovão de aplausos, gritos, assobios, patadas e palmas que durante uns minutos acolheu este inesperado exórdio, que acabou com o descer do pano no meio da mais franca e ruidosa alegria/e a récita começou.

Havia nos intervalos umas recitações e monólogos cantados, como o do “Zabumba”, pelo Aníbal Carneiro, de que só lembro o estribilho:

Pum, catapum, catapum, pum, pum,

do zabumba eu tiro som...

E na ribalta o José Luciano Ferreira Augusto," sobrinho do Dr. José Luciano de Castro, muito grave, pausado e romântico,"de olheiras de rolha queimada, avançava uns passos comedidos e solenes, e em voz cava, olhos em alvo, a mão sobre o peito, profere só isto:

Olhos, vi uns

E, depois de os ver.

Não vi mais nenhuns...

Às vezes surgia de um camarote uma figura esguia, de capa e batina com gestos largos a declamar uma poesia alusiva ao: dia Solene.

E havia outros intermédios em que tomavam parte os mais afoitos e tinham bossa para o palco.

Mas; o acto principal era geralmente unia comédia, opereta ou zarzuela adaptada à ocasião e em que figuravam os rapazes com maiores aptidões para a cena, e de uma vez até uma actriz, a Cármen de Oliveira, da companhia de operetas que funcionava no barracão de S. Francisco, que acedeu gentilmente a tomar parte na récita do 1.° de Dezembro.

Do entrecho da comédia já não me recordo, mas tenho a lembrança de que a Cármen fazia o papel de uma gentil lavradeira, que o Fernando Chaves, armado em conquistador, queria arrastar para o pagode da cidade.

E então o Fernando com, uma bela voz de barítono, Cantava a ária da sedução:

Mariquinhas, meu amor

Bem feliz podias ser

Se comigo p'ra cidade

Tu quisesses ir viver.

E ela:

Eu não quero cá sombrinhas,

Nem de cetim os vestidos

Tenho em mais estas roupinhas

E depois o diálogo cantado:

Mariquinhas

Vá-s'embora

– Dás-m'um beijo ?

Não senhor.

A seguir o dueto:

Um só beijo

Só que seja

Um só beijo

E partirei

Nem um beijo,

Só que seja

Nem um beijo

Lhe darei

E salta lá detrás dos bastidores o Brito, que era o namorado da rapariga, armado de cacete e, se não valem ao Fernando, como era da peça, escaqueirava-o, e quero crer que o faria, tanto foi a genica com que arremeteu e a realidade com que quis desempenhar o seu papel.

Noutra récita o Aprígio fazia de rapariga, disfarçado, com uma cabeleira ruiva e; lá pelo correr da peça, dava-lhe um chilique.

Chamavam o médico, que era o Fernando, e aparecia de polainitos brancos, luneta presa a uma fita e suíças, a receitar-lhe umas gotas homeopáticas, que preparava na ocasião numa série de frascos de que tirava umas gotas para dissolver na água do seguinte, e assim sucessivamente numas “dinamizações”; como dizia o Fernando, que nessa ocasião era médico, mas homeopata.

E de nada mais me lembro dessas memoráveis récitas do 1.° de

Dezembro.

Das Danças, além das que recordei há anos, tenho ideia de duas, ambas da autoria do P.e Roriz, uma em. Que se falava dos malefícios do tabaco, sem contudo se referir ao cancro do pulmão, e a outra acerca da aliança inglesa, e naturalmente a propósito da estadia aqui dos ingleses que vieram montar a estação termoeléctrica do Campo da Feira, onde está agora uma das fábricas da casa Pimenta Machado.

E dessas danças só recordo o seguinte:

Misses loiras, lavradeiras,

Zé Povinho, lord inglês,

Brincadeiras fazem sempre

Neste ninho português."



António de Quadros Flores (Coronel), Guimarães na última quadra do romantismo, 1898-1918, Tipografia Ideal, 1967, cap. XXIX, págs. 153-156.

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