Raul Brandão
Véspera de S. Nicolau e toda a populaça na rua: uma mixórdia de grotesco e de caligens, de lama e gritos, de gestos confusos e de novelos pastosos que se acastelam lá no alto e barram o céu de horizonte a horizonte em pesadas cortinas sobrepostas. Vem a cerração e a chuva pegada e tão miúda que amolece o granito. Das ruas irrompem sucessivos magotes, num clamor de inferno. Na noite ressoam gritos, urros, e clarões de archotes revoluteiam tornando-a mais densa e profunda: fisionomias e gestos surgem de repente como aparições e logo se somem no pez. É uma mescla de negrume e fogo, de braços que se agitam, de doida ventania e chuva cuspinhenta. Os tambores rufam sem interrupção — dir-se-ia que o planeta estoira farto de sonho inútil — e do nada, iluminados a vermelho, brotam bamboleando e somem-se logo sem aparência de realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a abóbada, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra. Uma derrocada em tropel, um jacto vivo de escuridão, um burgo de sonho entrevisto que o vento leva consigo.
A turba avança, a praça transborda: há milhares de bocas que gritam ao mesmo tempo. Aquele mar humano oscila, cresce, clama e dispersa-se. Quando os archotes se apagam, fica só a noite e o ruído; avivam-se os fogaréus e voltam a entrever-se as faces, as bocarras abertas pelos risos estúpidos, rasgados de orelha a orelha.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
É, na véspera da festa, o dia das posses, em que desde tempos imemoriais certas famílias estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore. Forma-se o cortejo. Já estrondeiam os primeiros compassos da charanga, que desce a rua a passos marciais, archotes à frente. Um reboliço, mais berros, rufos desesperados, uivos, maltas que desaguam de outras vielas recônditas e a multidão que oscila e se espraia até à muralha da igreja. Em cima a abóbada negra do céu goteja lama e as névoas arrastam-se lentas e esponjosas, bambinela atrás de bambinela, pegam-se às paredes e deformam-nas, desagregam-se, suspendendo–se nas arestas do granito como grandes farrapos de luto. Os uivos redobram. O mesmo pé-de-vento parece que faz redemoinhar a canalha e galopar no céu os grossos novelos de fumo.
— A câmara! aí vem a câmara!...
Pendões balouçam-se, inclinam-se como velas sacudidas pelo temporal, a que se agarram meia dúzia de náufragos. Logo mais alto, se ouvem os clamores e a charanga ataca as primeiras notas duma marcha de guerra. Abre o cortejo o presidente do município, imponente e grave, com o pendão erguido; seguem-no, solenes, o Pinheiro Careca e outros tipos cerimoniosos, de sobrecasaca e chapéu alto, sob a chuva incessante. Há um vaivém: a mó de gente empurra-se e rodopia, mas organiza-se afinal o cortejo, depois de desordens e protestos; das tabernas irrompem os últimos matulas de suíças; e o céu todo lama desce, desaba, imenso, gelado e fétido, sobre a triste humanidade. Fúnebre, lá consegue o Testa, de cara rapada e olho em alvo, abrir a marcha com o pendão erguido ao vento.
O Careca pega com sofreguidão a uma borla, a charanga segue a passo cadenciado, e por último os magotes anónimos e confusos.
— S. Nicolau! S. Nicolau!...
E tudo aquilo, mar de uivos, treva, archotes, homens e fêmeas, urros e clarões, jorro desordenado e imenso, se engolfa nas ruas estreitas, numa interminável e ensurdecedora bicha. Aqui e além o fogaréu dum archote: dum lado a casaria, do outro a muralha antiga, compacta e bárbara, a que a noite dá dimensões monstruosas.
[…]
Por fim um jorro humano estaca diante dum prédio emudecido e escuro, os clamores e a música cessam e a bicha, depois de ondular, atende ansiosa. Novelos sobre novelos as nuvens continuam lá em cima a sua desordenada e eterna correria sem fito.
O pendão camarário oscila, há um baque, e, grave como quem cumpre um rito, o Testa destaca-se do grupo e avança limpando da careca o suor das grandes solenidades. Diante do prédio, no silêncio e na noite, três vezes chama:
— Cucusio! cucusio! cucusio!...
Nada. Ninguém responde, e um frémito percorre a turba que espera sempre, milhares de cabeças erguidas no ar, as bocas abertas como peixes diante da casa negra e cerrada. Para o fundo no negrume outros, e mais outros envoltos na escuridão, atendem também como quem espera um milagre. E ouve-se no silêncio a chuva cair, miúda, pegajosa, eterna. Pela fresta duma janela lá se escoa por fim uma ténue claridade — e ao fundo estremece, silenciosa e compacta, a canalha comovida e atenta, até que, avançando com imponência mais dois passos, o Testa, como quem invoca, implora e ordena, torna:
— Cucusio!...
Sente–se abrir o postigo do prédio e uma voz comovida responde afinal ao apelo:
— Pronto, meus senhores, cá está o Cucusio!...
E logo assoma ao peitoril do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da vela, um monstruoso traseiro — como, desde tempos imemoriais, é obrigação daquela família, na véspera do santo, transmitida religiosamente de pais para filhos, mostrá-lo à vila. A charanga ataca o hino, os tambores ao mesmo tempo rufam, os urros estrugem, o pendão oscila levado pelo Testa, no alto daquela onda, e o sr. Anacleto corre sem ver nem ouvir, desorientado.
Raul Brandão, A Farsa (1903), cap. III.
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João Cucusio vivia na Rua Nova, onde faleceu no dia 1 de Agosto de 1825. Costumava ser visitado, no dia 5 de Dezembro de cada ano, pelos estudantes, quando andavam “às posses”, que lhe faziam à porta uma grande gritaria: "Ò Cucusio mostra o cu" ao que ele sempre acabava por satisfazer, “vindo à janela mostrar-lhes o olho do cu”. (Fonte: Efemérides Vimaranenses, de João Lopes de Faria).
Um comentário:
O trecho aqui ressuscitado andava-me perdido na memória desde os 16 anos quando, nos raros momentos de lazer, temperava os miolos, na Biblioteca Popular da Sociedade Martins Sarmento, fazendo caldeirada dos melhores autores da Lingua Portuguesa, Raul Brandão especiaria rara, um nome bem ligado a Guimarães!
Esse Cucúsio e a sua "posse" foi ressuscitado nos anos 40/50 por uma figura tipica da época, o Barroca, ali numa casa da antiga Rua de S. Dâmaso, agora Alameda.
Lá se foi a rua, o Barroca e a posse...
Os Cucúsios existem mas não se mostram!
Venham mais pérolas como esta.
AMG
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